Economia erótica em antropologia e transferência – Adriano Zago


Apresentação

O entrecruzamento de conhecimentos de áreas diversas das Ciências Humanas pode trazer contribuições interessantes para o campo psicanalítco, assim, neste artigo é apresentado um recorte de uma pesquisa antropológica que pode estabelecer reflexões com o conceito de transferência da Psicanálise.

A experiência na pesquisa de campo em Antropologia – a partir da relação do antropólogo e seu objeto de estudo – traz implícitos aspectos singulares para cada pesquisador, que pode ser relacionada com a singularidade da relação psicanalista-paciente, sendo que tal especificidade torna-se por si mesma um fenômeno de análise, como ocorreu no caso aqui descrito, inclusive por dimensionar relações imbricadas de questões que envolvem posicionamentos e dilemas da ordem do erótico, do sexual e da ética.

Partindo da experiência do antropólogo Steven L. Rubenstein[2], retratada no artigo “Fieldwork and the Erotic Economy on the Colonial Frontier” (2004) como exemplo de caso, este texto intenta percorrer as adversidades e o desconforto do pesquisador quando se depara com assuntos que envolvem os desejos no âmbito de sua intimidade, as questões éticas da condução da pesquisa, a relação de poder entre pesquisador–objeto de pesquisa, bem como as suas orientações em prol de uma “imparcialidade” científica.

Um Antropólogo em Campo diante de seus Desejos

Rubenstein descreve abertamente suas inquietudes vivenciadas durante o trabalho de pesquisa de campo sobre o povo Shuar (que vivem na região da província equatoriana Morona Santiago), entre 1988 e 1991, quando lhe afloraram sentimentos de intenso interesse sexual por algumas mulheres Shuar, em especial no ano de 1991, no qual ele relata sua experiência mais profícua. Conciliado a isto, ocorria eventualmente, por parte dos membros da comunidade que ele tinha mais contato, uma cobrança recorrente para que ele se casasse com alguma jovem dali, fato que o deixava constrangido em ter de negar diplomaticamente uma possível intenção sua de se casar, visto que o mesmo nutria uma forte angústia por causa do dilema de ter de administrar os seus desejos sexuais evidentes e a falta de intenção de constituir um matrimônio.

Isto implica numa forma de se refletir acerca não só da representação do conhecimento etnográfico, mas de certos problemas na produção desse conhecimento através do campo de pesquisa (Rubenstein, p. 1042), em especial, quando ele examina o papel do poder e desejo nos vários tipos de trocas constituídos entre ele e seus informantes. Surgem algumas urgências éticas para se fazer um exame crítico das experiências, pois elas incitam questões fundamentais sobre a natureza da exploração das relações interpessoais – nas culturas Ocidental e Shuar, mas também no contexto de trabalho de campo que abarca essas duas culturas. Por causa da experiência sexual vivida por Rubenstein, ele conseguiu perceber que não poderia confiar no distanciamento cultural e intelectual para protegê-lo de um envolvimento, aliás, ele notou que tais circunstâncias ocorrem em muitos casos em que antropólogos e seus informantes se tornam parceiros sexuais em potencial. Ele utiliza o termo economia erótica para englobar não apenas relacionamentos amorosos e sexuais, mas qualquer relação em que o desejo, sexual ou não, retribuído ou não, desempenha um papel significativo.

Durante seus primeiros anos no trabalho de campo ele evitou relações sexuais com as mulheres Shuar, apesar dos frequentes questionamentos dos membros da comunidade se ele não se casaria com uma Shuar que estivesse solteira ou descomprometida (isto porque a poligamia é permitida apenas para os homens Shuar).

Diante dessa demanda e de uma paixão incontrolável que o antropólogo sentiu ao conhecer uma Shuar em especial, Magdalena, ele não pôde mais evitar um envolvimento real, apesar de observar que seus sentimentos de distanciamento eram compostos de atitudes contraditórias em relação às mulheres Shuar. Às vezes ele pensava em se casar, pois havia ocasiões em que achava que a única forma de poder continuar pesquisando na região era casando-se com uma delas, até pela intensa fantasia sexual que se apoderou dele. Estava emocionalmente confuso, o que posteriormente lhe possibilitou refletir sobre o paradoxo da “observação participante”. Assim, no meio da sua confusão emocional, ele considerava se a única forma de ser bem-sucedido no trabalho de pesquisa para conhecer a cultura Shuar era constituindo o matrimônio, estabelecendo parentesco com alguns e vivendo permanentemente ali (ou seja, abandonando seu vínculo acadêmico; o que percebeu depois não ser necessariamente o caso).

Após iniciado o seu relacionamento com Magdalena, além do choque das diferenças culturais, ele percebeu que neste caso específico havia uma dupla intenção por parte dela: material e social. Social no sentido do que ele poderia oferecer-lhe como apoio financeiro para que ela conseguisse atingir sua desejada independência e entrada na vida cultural para além dos Shuar, pois Magdalena nutria o desejo de trabalhar e mora fora da aldeia. De alguma maneira, estava preconizada a relação entre colonizador e colonizado, em que o primeiro seria idealizado como detentor de uma posição privilegiada. Ele notou que estava se estabelecendo uma forma de relação baseada na reciprocidade, porém estranhou bastante, mesmo sabendo que entre os Shuar esse tipo de relação com base na reciprocidade (inclusive material) era comum.

Tal ambivalência incomodou sobremaneira o antropólogo, além do fato de ter descoberto que sua “namorada” já mantinha um romance com um homem Shuar (Pedro) e continuou a se relacionar com ele mesmo no período que iniciou os encontros com Rubenstein. Magdalena mantinha em segredo seu caso com Pedro, pois pela nomenclatura de parentesco dos Shuar, Pedro era considerado filho de Magdalena (ele era uma espécie de sobrinho, porém, mesmo não sendo biologicamente seu filho, tal parentesco não permitia a relação sexual, o que seria considerado incesto, bem como ocorre na nossa cultura).

Dúvidas e Compreensão no Trabalho de Campo

A partir do caso ocorrido, alguns questionamentos práticos tomaram a mente do pesquisador sobre casamento e sexo entre os Shuar. Seus informantes explicaram que o casamento se baseava em trocas materiais recíprocas, em que marido e mulher sempre esperavam realizar algo um ao outro. Além disso, Rubenstein questionou-os sobre prostituição, em que obteve uma informação direta: disseram-lhe que há mulheres interessadas apenas no dinheiro, que se envolvem com um homem só no momento, bem como o caso que estava acontecendo entre ele e Magdalena.

Com essa descoberta, muitos outros fatores começaram a surgir para o pesquisador, pois Magdalena não era a única Shuar que fazia coisas para ele em troca de dinheiro. O essencial do método de observação participante no trabalho de campo antropológico, segundo ele, é a confiança nas relações pessoais como um modo de aprender sobre a outra cultura, e a troca de dinheiro, conhecimento e amizade caracterizava a sua relação com seus informantes e outros membros da cultura Shuar. Contudo, começou a se questionar se a sua boa aceitação entre os Shuar não teria acontecido apenas porque ele lhes oferecia dinheiro, e não pela troca de conhecimentos e amizade como ele imaginava estar acontecendo com os membros da aldeia. Segundo seu informante mais próximo, Magdalena representava uma relação comum entre o nativo e o colonizador com dinheiro.

Rubenstein começou a pensar sobre Magdalena e tentou se distanciar para melhor compreender o que acontecia a partir do comportamento dela, o que percebeu que era um caso isolado. Ele considerou o fato de que embora muitos homens Shuar tinham diversas esposas e se gabavam de seus casos, ele não conhecia nenhuma mulher Shuar que possuía dois maridos, exceto a mãe de Magdalena, a qual admitiu ter tido um amante. Ele percebeu também que apesar de Magdalena dormir com ele, ela mantinha um caso com alguém que realmente amava – Pedro – mesmo sabendo que não poderia se casar com ele.

O antropólogo refletiu sobre a situação de Magdalena, uma Shuar vivendo numa fronteira colonial, constantemente exposta a mercadorias manufaturadas indisponíveis, numa sociedade onde as pessoas que possuem mais produtos têm mais privilégio e poder. Os poucos produtos manufaturados que os Shuar possam ter – uma faca, um par de botas, um vestido ou uma calça – representam um investimento significativo de tempo e trabalho. Além disso, no passado, os homens complementariam o trabalho feminino por meio de atividade como a caça, porém com o aumento da população (resultado da colonização equatoriana), os homens consequentemente têm menos a oferecer às mulheres e esperam muito mais de volta. Os homens exercitam o poder forçando os limites entre público e privado, enquanto as mulheres exercitam o poder transgredindo-os. Segundo o autor, mesmo em sociedades não estratificadas e de não mercado, como característica na Amazônia, o sexo pode ter um valor de troca estrategicamente utilizado pelas mulheres. A transgressão dos limites sociais por meio de tais trocas caracterizariam as políticas domésticas nesta parte da Amazônia.

Ironicamente, foi através da relação com Magdalena que o pesquisador assimilou que todo relacionamento na fronteira colonial existe dentro de uma economia libidinal. Além disso, ele aprendeu que dentro dessa economia libidinal há algo um pouco mais complexo – uma economia erótica, uma economia em que as pessoas não apenas produzem o que os outros desejam, mas desejam outras pessoas. Magdalena e ele não produziam simplesmente o objeto de desejo um do outro, eles desejaram um ao outro e expressaram o desejo através de um interesse nos objetos de cada um.

A economia erótica no trabalho de campo se opera mesmo na ausência de relações carnais. Rubenstein menciona uma outra antropóloga, Peggy Golde, que conduzia um trabalho de campo em Guerrero, México, em 1959, e também descreveu que os homens jovens começaram a cortejá-la, o que ela utilizou para manter um relacionamento mais proveitoso com seus informantes, embora não tenha cometido ato sexual efetivo com nenhum dos jovens.

Isto trouxe à tona algo acerca da instrumentalização da manipulação mútua: os pesquisadores em campo e seus informantes geralmente não conseguem sustentar a relação unicamente na base das trocas materiais. Muitos informantes são ficam satisfeitos de compartilhar sua vida com os antropólogos por troca de comida, produtos manufaturados ou dinheiro, eles querem que os antropólogos os considerem interessantes. Tal situação revela que o trabalho de campo com frequência envolve um processo de sedução recíproca.

Rubenstein ficou um pouco surpreso ao saber que outros colegas, ao lerem seu relato, admitiram a intensidade de suas concupiscências no campo. Eles pareciam imaginar que seus sentimentos lascivos eram consequências desconfortáveis do relativo isolamento. Um intenso estado de desejo sexual pode ser comum no campo, portanto, sugere que isto representa algo de extrema importância sobre a natureza do trabalho de campo.

Entrecruzando os Campos de Conhecimento

De fato, o contexto da pesquisa etnográfica de Rubenstein incluindo o sexo não como clichê ou sensacionalismo, retratou uma história real sobre economia erótica, que inclusive caracterizou muitas das relações não sexuais entre ele e os Shuar, bem como muitos relacionamentos entre os próprios Shuar.

Ele não precisaria ter mantido relações sexuais com Magdalena para aprender sobre os Shuar, contudo, foi ao fazê-lo que pôde perceber o quanto de tudo que ele descobriu sobre esse povo dependia não apenas da intimidade, do desejo pela intimidade e dos convites para intimidade, mas sobre distanciamento e negação (Rubenstein, 2000, p. 1063). Embora ter tido um caso amoroso como parte de seu método de pesquisa foi provavelmente uma ideia “tola” e perigosa, ele afirma ter realmente aprendido muito mais sobre a vida dos Shuar e também sobre Antropologia.

Um ponto importante vivenciado por Rubenstein é a atração que se estabelece no antropólogo em contato com o novo conhecimento (seja pelo objeto real de estudo, a mulher Shuar, no caso de Rubenstein, seja pela religião afro-brasileira, no caso de alguns antropólogos descritos por Silva (2000). Segundo este autor:

As continuidades e semelhanças que o antropólogo encontra nas relações sociais que estabelece no espaço da academia e do terreiro permitem que ele construa identidades (profissional e religiosa) não contraditórias ou excludentes entre si, ainda que suas ações sociais tenham nesses campos conteúdos e finalidades distintas. (SILVA, p. 114)

No trabalho de Rubenstein, o que marcou a sua experiência para além do conhecimento sobre a cultura Shuar refere-se à economia erótica estabelecida na sua pesquisa de campo e de quão comum tal fenômeno é passível de ocorrência no trabalho de outros pesquisadores.

Na Psicanálise, ocorre o fenômeno similar denominado amor transferencial, porém, caracterizado principalmente na paixão desenvolvida pelo paciente em direção à figura do psicanalista. Uma particularidade que distingue esse amor é que ele se transforma em instrumento útil de trabalho para o analista, embora ele não possa nunca ceder aos encantos deste apaixonamento, devendo manter um firme domínio, tratando o amor transferencial como algo irreal, como uma situação pela qual o tratamento tem de passar e remontá-lo a origens inconscientes e que devem auxiliar a trazer à consciência tudo que está profundamente oculto na vida erótica do paciente. Segundo Freud (1915), para o analista motivos éticos se unem com os técnicos para impedi-lo de corresponder a esse amor; ainda mais, ele deve reconhecer que é a situação analítica que induz o paciente a apaixonar-se. Silva (2000, p. 96) também compara a “empatia do pesquisador com o mundo de seu pesquisado quase como uma transferência psicanalítica”.

Sendo assim, a economia erótica que se estabelece nas relações nos campos da Antropologia e da Psicanálise são fenômenos comuns nos quais o pesquisador ou analista devem saber conduzir da maneira mais ética possível. Freud percebeu sabidamente que a paixão desenvolvida por suas pacientes em direção a ele não eram exatamente para ele, mais sim pela figura do médico. O fenômeno se estabeleceria seja por ele, seja por qualquer outro profissional, e, com isso, Freud desenvolveu a chance de compreender as razões pelas quais isto acontecia de forma recorrente, e desenvolveu a análise do amor transferencial como instrumento de compreensão dos aspectos inconscientes do paciente em tratamento. Fato adverso ao ocorrido com Rubenstein. Obviamente, tomado por seus próprios desejos sexuais, ele não considerou de início que o desejo de Magdalena estava voltado para o homem não Shuar com dinheiro, podendo ser ele tal homem, podendo ser outro qualquer.

Assim, com o conceito de amor transferencial Freud pôde trazer um avanço inclusive na metodologia de pesquisa, abrindo margens para reflexões pertinentes à relação pesquisador-objeto de pesquisa. A escuta psicanalítica ocorre na transferência, que envolve tanto o sujeito como o psicanalista; assim sendo, podemos concluir com a seguinte afirmação de Rosa (2004) sobre a pesquisa de fenômenos sociais com base no referencial psicanalítico:

O método é a escuta e interpretação do sujeito do desejo, em que o saber está no sujeito, um saber que ele não sabe que tem e que se produz na relação que será chamada transferencial. (…) O sintoma é a realização do desejo, o lugar da verdade do sujeito, uma mensagem, um enigma a ser decifrado; nele está o cerne da subjetividade. (p. 340)

Referências

FREUD, S. (1915) Artigos sobre Técnica. Observações sobre o Amor Transferencial. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

ROSA, M.D. A Pesquisa Psicanalítica dos Fenômenos Sociais e Políticos: Metodologia e Fundamentação Teórica. Revista Mal-estar e Subjetividade, vol. IV, n.2, p. 329-348, 2004.

RUBENSTEIN, S. L. Fieldwork and the Erotic Economy on the Colonial Frontier. Signs: Journal of Women in Culture and Society, vol. 29, n. 4, p. 1041-1071, 2004.

RUBENSTEIN, S. L. Chain Marriage among the Shuar. The Latin American Anthropology Review, vol. 5, n. 1, p. 3-9, 1993.

SILVA, V.G. O Antropólogo e sua Magia. p. 95-113. São Paulo: Edusp, 2000.

[1] Mestre pelo Depto. de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP / Graduado em Ciências Sociais pela USP / Pós-graduado em Teoria Psicanalítica pela PUC-SP. Psicanalista.

[2] Professor-assistente do Depto. de Sociologia e Antropologia da Universidade de Ohio.

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