Nova canção do exílio – Arnaldo Domínguez


“Tudo é pretexto para recolher folhas amigas”
Machado de Assis, “Páginas recolhidas”.

Sob a orientação de Machado de Assis preferiria lhes dizer que, minhas palavras nestas folhas, “umas são contos e novellas, figuras que vi ou imaginei, ou simples idéas que me deu na cabeça reduzir a linguagem… comedia escripta para as festas centenárias de Camões”. Ah! Diria-vos, se aqui e agora cantasse um sabiá, eis o verdadeiro discurso! E reinauguraríamos o busto de Gonçalves Dias como se de novo fosse 02 de junho de 1902 no Rio de Janeiro.

Mas sucedeu-se mais de um século à citação daquela “Canção do exílio” “que ensinou aos ouvidos da antiga mãe-pátria uma lição nova da língua de Camões”. Língua esta que falamos, mesmo quando modificada por acordos de nova ortografia e pela intromissão – em nossas vidas – de uma tecnologia sempre insatisfeita, mas que, por fim, “ainda é a língua dos nossos destinos”.

Os pretextos freudianos que ora nos congregam, também contemporâneos à inauguração da “Academia Brazileira de Lettras”. “Homens d’aqui podem escrever páginas de historia, mas a historia faz-se lá fora”, afirmava Machado, por sua vez, inspirado em Montaigne, de um século anterior. Aquele, preocupado também, em “trabalhar pela extensão das idéas humanas”.

Ocupo-me, então, dessas histórias que são feitas lá fora, mas que aqui vieram procurar algum novo sentido. Para que não abusemos em chamar estes sujeitos de ‘carentes de inconsciente’, como se fossem puros atos de um corte que não corta nada, e que, perdermos esse nada, seja o empobrecimento da experiência do atual.

Chegaríamos ao fim do desejo satisfazendo uma urgência de gozo, como pretendem nossos fármacos? Ou daremos lugar para a palavra? O que chamamos subjetivo.

Inicio, então, um tanto aleatoriamente pela história de Luciano, jovem rapaz, 16 anos, cuja mãe fosse, durante longo período, uma psicanalisante das que alguns chamariam “rebelde”. Feminista, opositora dos patriarcados, sairia bem na foto junto a Rosa Luxemburgo ou Simone de Beauvoir. Arrimo de família desde seu cargo de coordenação, exagerada em regras cognitivas, a pedagogia, quase sempre em conflito com a Diretora, senhora que, com gosto, reinava no quadrante aonde, ao menos um – ela, no caso – pretendia dizer não à castração. O matriarcado.

Muito trabalhava esta mulher, mãe de Luciano. Mesmo assim, dava-lhe uma magra semanada para o lanche. E fartas recomendações, por escrito, destinadas a lembrar dos limites impostos pelo diabetes tipo I de que sofria esse “guri”.

Ela ignorava, como sempre, as razões que motivaram Luciano a vir me procurar. De fato era o medo, mas medo de outra cousa!

Seu amigo fora assassinado numa dessas paragens que certos bandidos e alguns homens da lei escolhem e compartem com o objetivo de levar a cabo a execução da pena máxima. Depois disso escreverão nos muros: Aqui a lei funciona!

Luciano e seu amigo roubavam carros no farol da rotatória que fica lá mesmo, quase enfrente à delegacia de polícia. E desde ali os levavam ao desmanche mais próximo de propriedade dos servidores da ordem pública.

Ganhavam muito dinheiro. Digamos que, nos dias prósperos, recebiam o valor que suas mães demoravam todo um mês para merecer. Mas, como não podiam delatar-se, gastavam tudo nos finais de semana e o excedente, distribuíam-no entre os moradores de rua.

Porém, o amigo fanfarrão falara além do permitido. Por isso, ao finalizar essa primeira entrevista, Luciano me alertou: – Quem abrir a boca? Morre!

– E você abriu a boca! Eu exclamei colocando as minhas mãos em meu rosto. Devolvendo-lhe o susto.

Quando já a situação de Luciano, na rua, avançava para o insustentável, utilizando a autoridade que a transferência analítica me havia conferido, o interpelei:

– Tens que contar tudo para a tua mãe ainda hoje!

– Ela vai me matar! Retrucou de imediato.

– E o que preferes? Que te mate tua mãe ou ser executado?

Cinco anos depois, e sem aviso prévio, recebi sua visita fugaz. Senti-me como Freud perante Herbert Graf: o pequeno tornara-se um homem!

Contou-me como fugiram, ele e sua mãe, naquela mesma noite depois de nosso encontro último na sessão analítica. Sem deixar rastros!

Quanta generosidade me contar!

Já faz bastante tempo, mas nem por isso esta história é antiga. “Quem pense que existem antiguidades equivoca-se totalmente – diz Novalis – é agora quando começa a surgir a antiguidade”.

Se este Luciano também merece um lugar de honor na narrativa das línguas perversas, ele pode construir uma saída possível pela vida. Não assim aquele outro da época média do Império Romano que nascera ao redor do ano 120 d.c. e tornara-se mestre da retórica. Vivera em meio a uma crise social de época tardia numa burocracia distante da Rés Pública, quando massas humanas perambulavam em busca da condução de seitas filosóficas, ao mesmo tempo em que surgiam novos cultos religiosos na Ásia Menor, dentre os quais, o cristianismo. Uma fermentação individualista – diz Sloterdijk – que produzia novas qualidades de massificação. Seria uma grande coincidência da repetição histórica se não fosse que a nossa é uma multidão dispersa. O sujeito-mestre do discurso capitalista – escreve Colette Soler – é um sujeit o desarrimado em multidão, é o Um que faz sua verdade, o Um sozinho não coletivizante. O narcínico!

Luciano, o Peregrino, queimou-se voluntariamente em frente ao público para satisfazer o seu desejo de tornar-se uma celebridade (precursora do big brother).

O nosso, consentiu em renunciar à promessa do paraíso das pulsões e abriu a boca num lugar apropriado.

Nós, os analistas, temos lugar em meio ao caos destas “vidas lokas” desde que não sejamos acometidos por uma limitação da ordem das fanfarronices do suposto saber. Aliás, algo se inverteu nisso. Sabemos pouco, a não ser através da mídia (tantas vezes sensacionalista e exploradora do espetáculo do horror) ou das pesquisas de campo de tantos/as jovens e abnegados antropólogos, mas que podem modificar seu teor original quando são embalsamadas pelos saberes estabelecidos na “mcdonaldização” da ciência a cargo de tantos/as capatazes do imperativo “Publique ou Desapareça!”. (Thomaz Wood Jr., ‘Carta Capital’ de 23-05-2012).

Apesar de ter sobrevivido, Damião não teve a mesma sorte de fugir em tempo.

No entardecer dos 17, cabelos espetados e tingidos, brincos, piercings e tatoos, fone de ouvido, celular com toda a parafernália oferecida então, roupas de uni-forme desta geração – mesmo quando certa moda se esforça por singularizar – corpo hipertrofiado pela musculação, seria capaz de causar uma reviravolta em Machado de Assis se ele decidisse retornar, por acaso.

Lembram vocês de “Rubião fitava a enseada – eram oito horas da manhan. Quem o visse, com os pollegares mettidos no cordão do chambre… e tudo, desde as chinellas até o céo, tudo entra na mesma sensação de propriedade”?

Pois é, Quincas pós modernizou-se. E, passado o primeiro impacto, nosso imortal eterno logo notaria a semelhança compartilhada entre este Damião e o próximo, Adamastor, ambos em extremos sociais bastante distantes, mas tão próximos em caráter e erotismo. Oferecer-lhes uma nova possibilidade de escolha significa algo raro e valioso! Essa é a promessa freudiana da qual nós nos apropriamos.

Damião, representante de um discurso capitalista em expansão, também havia engrossado prematuramente sua voz, e com esse tom quase impostado, dizia e desdizia sedutor e sem nenhum compromisso. Viria a se tornar um grande criminoso ou um humorista desta Zorra Total? Segundo Freud – na introdução ao narcisismo – ambos conquistarão nosso interesse. Os invejaremos em nossa covardia neurótica?

Esta questão da voz que engrossa antecipadamente – um novo protesto masculino? – tem preocupado aos regentes do coro da orquestra de São Tomas, em Leipzig, aonde também se desempenhou Ioham Sebastian Bach. Ouvi essa informação na rádio Cultura de São Paulo. Na época de Bach a voz dos meninos atingia tonalidade masculina aos 17, 18 anos. Depois, com o passar do tempo, a idade limite para integrar o coro, diminuiu de modo progressivo. 16, logo, 15. Na atualidade, aos 13 e até os 12 anos o timbre já se modifica. E as meninas menstruam, assim como o imaginário das crianças é erotizado de modo tão precoce e fálico.

Para o coro esse encurtamento fisiológico que ocorre nos meninos representa uma grave ameaça. Tanto tempo eles demoram na aprendizagem (isso não diminuiu) e tão pouco ou nada sobra para apresentar!

Então, nosso Damião, estava de acordo com a subjetividade desta época.

Como faltou ao compromisso no dia de honrar com sua palavra – algo que eu já previa – deixei-lhe uma mensagem. No dia seguinte entrou em meu consultório uma senhora desafiante que jogou um dinheiro sobre a minha mesa de trabalho e me encarou com dedo em riste: – Não perturbe mais meu filho!

E, então, eu fiquei perturbado. Nesse lugar, entre o imaginário e o simbólico, é que o psicanalista encontra sua maior solidão e é aonde tem que poder suportar o seu ato.

Damião estava envolvido em inúmeras atividades de alto risco, entretanto, a que eu julguei mais perigosa era a de ser o amante da mulher de um policial da rota. Dormia com ela nas noites em que o marido fazia ronda no camburão.

Noche de ronda! Que las rondas, no son buenas. Que hacen daño, que dan pena, que se acaba por llorar! (Diz o velho bolero).

A carta de Damião chegou alguns meses depois. Escrevia desde o presídio de segurança máxima que fica em Presidente Wenceslau, no interior do Estado de São Paulo. Contava-me sobre como no dia em que festejava seu décimo oitavo aniversário foi preso ao auxiliar no conserto do carro de um amigo que estava na rodovia Anhanguera. Na mata, a polícia encontrou um homem e sua filha amarrados. Era um sequestro.

O que se seguiu foi o de praxe. Cadeia inafiançável, proteção do PCC (primeiro comando da capital), cuja ética é Todos pelo UM, na busca do ideal de “igualdade”. A mãe de Damião tornou-se liderança da “alegre” caravana de mães e mulheres de presidiários que embarcava aos sábados no terminal da Barra Funda. Continuou a pagar as dívidas do filho, certamente mais temerosa, agora, do poder dos credores, pois Damião, na faxina da casa de detenção, estava sob a vigilância dos prisioneiros residentes, na condição de primário (primo) com perspectivas de batismo no Crime o que lhe conferiria a categoria de irmão, caso revelasse ser merecedor de confiança através do proceder. Não sei se conseguiu essa filiação definitiva.

Lembrei-me de outro incidente narrado por um servidor da justiça que fazia plantão no momento em que se julgava o massacre do Carandiru. Sua função era manter os réus e as testemunhas incomunicáveis. Porém, dentre as testemunhas havia juízes e outros membros da alta hierarquia judicial, que encomendavam pizzas e bebidas no mundo externo e mantinham atividades de rotina como se não estivesse acontecendo nada. Quando recebeu a mensagem para uma das testemunhas, que era a seguinte: – A tinta já chegou! Quando você virá a pintar? O funcionário achou injusto sustentar esses dois pesos e essas duas medidas da lei e transmitiu o recado escrito num papel amassado.

A carta de Damião também veio amassada, lida, certamente, pela censura que a deixou passar. Porque me escreveria? Para informar que estava livre da onipotência materna? Ledo engano!

Ou que se tornara um criminoso em consequência do sentimento de culpa?

Como me comprometi, apresento-lhes o terceiro relato que diz respeito a minha história com o Dr. Adamastor. Ele era filho de uma analisante. Telefonou para pedir um horário em minha agenda e oferta-lo a seu amigo muito deprimido, um juiz. O colega de turma, um promotor, havia assassinado a esposa grávida, advogada, por conta de ciúmes paranoicos, me disse. Na vara criminal é difícil não sofrer de paranoia, justificou.

Adamastor era sócio da esposa deste juiz num escritório de advocacia situado em região nobre. E vieram os três no horário dado. Eu atendi o Juiz.

Porém, certo dia, Adamastor e sua sócia me procuraram para comunicar que eram amantes e que fugiriam levando filhos e dinheiro do casal. Eu teria que acolher o marido traído e a mãe abandonada? Aliás, abandonada em meio a suas próprias irregularidades, posto que ela praticasse o delito de acúmulo de função. Oficial de Justiça, oficialmente, também coordenadora do departamento jurídico de outra prefeitura em que o administrador era acusado, e com razão, de improbidade administrativa. Essa notícia veio a público, ao depois, por conta de mais de um assassinato de vereador corrupto na cidade em questão.

Adamastor era o funcionário fantasma, ou “laranja”, melhor remunerado por assinar no lugar de sua mãe. La Cosa Nostra!

– Vocês podem contar isto que me dizem até segunda-feira. Era uma quinta-feira. Na próxima semana, senão, eu mesmo o faço.

Ah, de novo o indicador, meu velho conhecido, apontado para mim como uma espécie de Tio Sam que me interpela. – Vou te pegar!

Abririam um processo contra mim por minha falta de ética. (E eu, certamente, perderia, no mínimo, o sono, como aconteceu no final de semana subsequente a esse episódio desastroso).

Entretanto, para minha surpresa, terceirizaram a relação depois de terem conversado. Foram morar juntos num triplex e talvez tenham sido felizes para sempre.

A mãe ficou indignada com a sem-vergonhice. Agora, nos convites para as festas teria que escrever Adamastor e família? Que vexame!

Discussão:

No seminário de 1969, intitulado “De um Outro ao outro”, Lacan situa a Coisa como o lugar do gozo e o Outro como o lugar do desejo. Referindo-se à perversão utiliza o termo “Gozo do Outro”, transgredindo essa lógica.

No Édipo estrutural, em princípio, a mãe representa para a criança um Outro pleno de potência de dar ou privar, o que já constitui uma das categorias da falta que dá origem ao sujeito. A necessidade dependente (do humano prematuro) se transmuta em demanda. Nesse primeiro tempo o desejo é materno: o desejo do Outro. E a criança é o falo, esse terceiro termo intermediando a relação e que equivale ao Nome-do-Pai.

O pai, diz Lacan, é uma sanção significante, cuja entrada determina o segundo tempo do Édipo. Proibição do incesto, para Freud. A criança será expulsa dessa posição de objeto da satisfação instaurando-se a frustração, segunda categoria da falta.

No terceiro tempo do Édipo lacaniano, que é um retorno do terceiro sobre o primeiro, somos remetidos ao pai enquanto portador do falo, ou seja, esse que tem o que a criança não é. Isto introduz a terceira categoria da falta, a castração. E agora podemos começar a falar em desejo.

Diz Lacan que todos somos filhos do discurso. Digamos do desejo, então. Mas isto é algo que fracassa nas famílias, essa célula mater tão vulnerável. Pois as famílias adquirem uma conotação incestuosa, endogâmica, diria Lévi-Strauss. Algo da ordem do fantasma de aprisionamento. A “Coisa Familiar”, diz Anabel Salafia, fazendo um paralelo com a máfia. Onde o falso universo de poder, a onipotência do Outro, é a Coisa Materna.

Luciano, Damião e Adamastor vieram pedir minha clemência para sobreviver, assim como o jovem Bento Santiago (Dom Casmurro) sonhava com que o imperador pudesse intervir para evitar o destino de seminarista que sua mãe lhe havia imposto. Ela somente se curvaria perante tal poder.

As mães de Luciano e de Adamastor submeteram-se à análise, a duras penas e resistências. Talvez isso me tornasse “Imperador” nessa burocracia de gozo.

Para a mãe de Damião foi o PCC quem lhe ordenou:

– Não reintegrarás o teu produto!

Infelizmente, essa ordem tem uma contrapartida sacrifical: – Nós o reintegraremos assumindo o direito de gozar dele do jeito que quisermos. Nada diferente da atitude policial (na ditadura do gozo), de onde só é possível sair morto ou identificado ao ideal do eu, como na Igreja Universal destes reinos. E nos demais sequestros.

A psicanálise produz um efeito que implica um sujeito, disse Lacan em 1967. Freud exigia sinceridade dos analistas, já que os médicos mentem. Lacan exige lógica e, do analisante, decisão e compromisso, para que haja uma perspectiva de mudança a propósito da posição do sujeito enquanto a sua relação com o saber não sabido. Trata-se da “renúncia ao poder, temível, do gozo” de que fala Moustapha Safouan.

Se todos somos filhos do discurso, seremos irmãos e irmãs na língua? Constituídos no seio da estruturação edípica em que se formam o super-eu e o caráter. Assim, é diferente falarmos em declínio do patriarcado, enquanto poder, do que de declínio da metáfora paterna, enquanto instância estruturante da irmandade humana. Desses seres falantes (falasseres) chamados homens e mulheres. Se for a metáfora a instância que declina, nosso apelo se endereça ao retorno messiânico do totalitarismo.

Senão, então posso exigir que eu queira frátria, em vez de pátria ou mátria?

O que quer e o que pode essa língua?

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Arnaldo Domínguez é psicanalista e professor no curso de Formação do Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP)-SP.

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