Até que ponto o ser humano realmente se conhece? – Caio Escorel


Até que ponto o ser humano realmente se conhece? – Um olhar psicanalítico através do cinema
Caio Escorel

Até que ponto o ser humano realmente se conhece? Até que ponto calculamos o impacto que nossas ações, mesmo as pequenas, têm na vida de outras pessoas? O autoconhecimento, a chave para a iluminação de nossas tendências obscuras, é a única forma de garantir que a personalidade consciente não se esfacele em proveito da personalidade inconsciente.

Há muito tempo, quando um sábio disse que o inferno está cheio de boas intenções, provavelmente estava se referindo ao lado sombrio de nossas atitudes. A expressão, conhecida por todos nós, aplica-se diante de propostas supostamente bem-intencionadas que podem ter consequências ruins ou ineficazes. Centenas de anos após o surgimento dessa fala, Freud chamou o mesmo “inferno” de inconsciente. O criador da psicanálise começava sua teoria revolucionária explicando que o homem não teria controle total sobre a própria mente. Portanto, a atividade mental não estaria sob domínio integral do portador, necessitando de constantes investigações (quem sabe, tornar consciente o inconsciente). Os inaceitáveis impulsos agressivos, por sua vez, estariam reprimidos, porém exercendo efeito no comportamento humano.

No livro Perdas Necessárias, a psicanalista Judith Viorst nos oferece um belo exemplo de como um impulso indesejável (no caso, a inveja) pode coexistir na amizade de duas amigas. “Só quero ser igual – não superior”. Assim, quando a amiga Audrey – bonita, rica, bem-sucedida – “se queixa de que o marido não a trata bem, eu ofereço a ela muita simpatia, muito conforto, mas digo para mim mesma: `Muito bem, então o marido a trata mal – é justo´”.

Em Foi Apenas um Sonho, filme do premiado diretor Sam Mendes, idealização, inveja e hostilidade marcam presença em boa parte das cenas. Durante um dos diálogos, o personagem Frank, de DiCaprio, está inseguro sobre os sentimentos por ele da personagem April, de Kate. Numa tentativa inconsciente de ferir a esposa – e arrancar uma demonstração de afeto –, Frank resolve contar para ela que teve um caso com Maureen, uma secretária do trabalho. Muito atenta aos mecanismos psíquicos de Frank, April logo entende o porquê de seu marido estar fornecendo aquela informação desnecessária (ele não contou por que se sentia culpado), sendo que a reação que ela tem vai de encontro ao que o inseguro – e narcísico – Frank esperava. “Não estou perguntando por que você ficou com a tal garota; estou perguntando por que você me contou. Qual é o objetivo? É pra eu ficar com ciúme, ou algo assim? É pra eu me apaixonar por você, ou ir pra cama com você, ou o quê? O que você espera que eu diga?” Então, diante dos questionamentos de April (que levam Frank a olhar para suas reais intenções), Frank responde: “Por que você não diz o que está sentindo?”

De acordo com o diálogo, percebemos que Frank queria atingir April em sua vulnerabilidade – a fim de se sentir seguro. O personagem, que não tem autoestima, não apresenta um conceito edificado de si. No começo do filme, ele bem tenta impressionar April, vendendo para ela uma imagem que não consegue sustentar por muito tempo. Quanto ao amor que sente pela esposa, podemos dizer que é bastante questionável. Ele não conta sobre o affair com Maureen porque se sente culpado, o que consistiria uma tentativa de reparação, mas sim porque precisa constantemente reformular o conceito que tem de si (como já foi dito, ele é inseguro), sendo que a libido está mais investida no próprio ego que no objeto. Se existe uma personagem heroica no romance, sem dúvida, essa personagem não é Frank, mas sim April.

A maldade humana (nossa incapacidade de amar?), ao contrário do que muitos pensam, não está longe de nós, mas sim presente na vida diária. Embora não seja perfeita, a pessoa amorosa não está mais preocupada com o conceito que os outros têm a seu respeito e, portanto, sente-se livre para doar-se verdadeiramente aos outros. Além de dominar as pulsões internas, a pessoa que ama realiza um autoexame de consciência diário.

A seguir, como outra ilustração da dinâmica psíquica humana, apresento algumas considerações sobre o filme Rose Red, associando-o à noção de transgeracionalidade.

“Rose Red”: um filme sobre uma história de transgeracionalidade

O filme conta a história de Joyce Reador (Nancy Travis) – uma professora de parapsicologia da Universidade de Beaumont – que, apesar de sofrer uma enorme pressão contrária do seu chefe – o professor Carl Miller (David Dukes) – decide descobrir toda a verdade sobre Rose Red, uma mansão construída em 1907 por John P. Rimbauer, um magnata do petróleo que deu a casa de presente para Ellen, sua esposa. Ellen aumentou e controlou a casa com mão de ferro até 1950, quando sumiu misteriosamente, o que também já tinha acontecido com April, sua filha. Entretanto, a casa continuou “crescendo por conta própria”. Como toda boa casa “mal assombrada”, Rose Red está cercada de lendas passadas pelo povo da região de geração por geração.

Contrariando o ceticismo do chefe de seu departamento, a Dra. Joyce reúne uma equipe de dez paranormais, cada um com uma habilidade extrassensorial. Entre eles destaca-se Annie, uma menina de 15 anos cujas habilidades psíquicas são tão poderosas que a fecham do mundo normal. Ela pretende usar os talentos de seu grupo para despertar os mistérios da mansão. Contudo, não só os mistérios serão despertados.

A partir desse enredo, podemos começar a pensar na personagem principal do filme: a mansão Rose Red. É uma casa que “cresceu por conta própria” durante muitos anos. A história da casa, assim como o inconsciente, é atemporal, marcada por matriarcado, traumas, segredos e mistérios. Embora a Dra. Joyce Reador considere Rose Red uma célula-morta, as habilidades psíquicas de Annie reativam o psiquismo interior da mansão e novos desaparecimentos começam a acontecer dentro da casa. Ao não ser compreendida, a história não verbalizada de Rose Red passa transgeracionalmente pelo inconsciente da casa, produzindo sintomas semelhantes aos de 1907 (desaparecimentos, casa crescendo por conta própria e mortes). A mansão conserva a sua essência doentia, mesmo que os visitantes do tempo atual sejam diferentes dos moradores do início do século XX.

Rose Red está marcada pelo funcionamento psíquico de outrora, uma vez que a patológica vida psíquica dos Rimbauer marcou sob forma traumática a posterior existência da casa, que é movida pela pulsão de morte. Para se livrar da escravidão de ser obrigada pelo inconsciente a repetir eternamente a mesma história trágica de 1907, Rose Red precisa de um “terapeuta” que entenda as questões fixadas no psiquismo (questões que ficaram em suspenso no inconsciente da casa) de sua história para ver como ela condicionou o que ocorre com o grupo da Dra. Joyce. A casa precisa integrar seus conteúdos psíquicos.

De acordo com a matéria da psicanalista Marina Ribeiro (publicada na Revista Psique Ciência&Vida): “A difícil relação mãe-filha”, a transmissão psíquica através de gerações é comum. A autora cita o livro Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Márquez, no qual as gerações se sucedem, mas as histórias e os nomes dos personagens se repetem até não sabermos mais quem é a mãe, quem é a filha, quem é o pai, quem é o filho. “Aquilo que colocamos no porão escuro da nossa vida e que não queremos ver nunca mais, aparece em nossos filhos com luzes ofuscantes”, diz Marina. É o que se percebe em Édipo, uma vez que, buscando se livrar de seu destino vai exatamente ao encontro dele, sendo a tragédia uma espécie de punição ao indivíduo pela tentativa de desvendar um segredo familiar. 

“Tu estás lutando, em vão, contra a tua responsabilidade e estás declarando, em vão, o que fizeste em oposição a essas intenções criminosas. És culpado por não teres conseguido destruí-las; elas ainda persistem em ti, inconscientemente.”

A terceira geração, a partir de Laio, pai de Édipo, é aquela que realmente ficou sem possibilidade de livrar-se do que lhe foi predestinado; em seu psiquismo instalou-se um vazio que impediu a utilização de defesas de cunho neurótico para livrar-se do fardo. Foram transmissões transpsíquicas que causaram nos netos de Laio uma cegueira muito maior que a de Édipo, e, diferentemente dele, não houve possibilidade de elaboração alguma: todos, com exceção de Ismene, buscaram, ainda jovens, uma morte violenta.

Para os autores do livro “Transgeracionalidade, de escravo a herdeiro: um destino entre gerações”, o sujeito cativo – escravo – da dor psíquica de um antepassado vive conforme um mandato transgeracional (através dos sujeitos) do qual não consegue se libertar, ou seja, não existe a singularização do herdado, pois a transmissão se impõe em estado bruto aos descendentes. “Por meio da escuta de falas ancestrais, muitas vezes não ditas, a psicanálise pode ajudar esses sujeitos a encontrar o caminho de seu verdadeiro legado, ao tornar seu aquilo que herdou, permitindo a conquista de sua condição de herdeiro”, dizem os autores do livro. No processo das transmissões, tanto pode haver uma urgência em transmitir como em interromper esse processo. Para René Kaës, um dos participantes do movimento psicanalítico francês da década de 1980, as transmissões trabalham a favor das exigências do narcisismo, buscando a conservação e continuidade da vida psíquica. Assim, para finalizar, destaco duas passagens do autor:

“De nossa pré-história tramada antes de nascermos, o inconsciente nos terá feito contemporâneos, porém só chegaremos a ser seus pensadores por ressignificação. Essa pré-história, de onde se constitui o originário, está arraigada à intersubjetividade (transmissão que ocorre entre os sujeitos, e não através dos mesmos).”

“Na óptica das relações entre as gerações, diríamos que uma característica das identificações inconscientes é que elas são inicialmente inaudíveis e, assim, permanecem por muito tempo no processo analítico. Da mesma forma, a culpa neurótica não aparece como um indicador, pois não caminhamos no terreno da repressão, já que o desconhecimento da responsabilidade do sujeito não é consecutivo a um ato repressivo; trata-se de um fardo ou ‘mandato’ do qual o filho não consegue se libertar por meio de mecanismos neuróticos.”

Caio Escorel é psicólogo e escreve no blog “Cinema & Psicanálise”:
www.cinemaepsicanalise.blogspot.com Email: caioescorel@live.com

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